sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

PRETO E BRANCO, de Fernando Sabino



Perdera emprego, chegara a passar fome, sem que ninguém soubesse: por constrangimento afastara-se da roda boêmia que antes costumava frequentar - escritores, jornalistas, um sambista de cor que vinha a ser seu mais velho companheiro de noitadas.
 De repente, a salvação lhe apareceu na forma de um americano, que lhe oferecia emprego numa agência. Agarrou-se com unhas e dentes à oportunidade, vale dizer, ao americano, para garantir na sua nova função uma relativa estabilidade. 
E um belo dia vai seguindo com o chefe pela Rua México, já distraídos de seus passados tropeços, mas, tropeçando obstinadamente no inglês com quem se entendiam - quando vê do outro lado da rua um preto agitar a mão para ele. 
Era o sambista seu amigo.
Ocorreu-lhe desde logo que ao americano poderia parecer estranha tal amizade, e mais tarde: incompatível com a ética ianque a ser mantida nas funções que passara a exercer. Lembrou-se num átimo que o americano em geral tem uma coisa muito séria chamada preconceito racial e seu critério de julgamento da capacidade funcional dos subordinados talvez se deixasse influir por essa odiosa deformação. Por via das dúvidas, correspondeu ao cumprimento de seu amigo da maneira mais discreta que lhe foi possível, mas viu em pânico que ele atravessa a rua e vinha em sua direção, sorriso aberto e braços prontos para um abraço.
Pensou rapidamente em se esquivar - não dava tempo: o americano também se detivera, vendo o preto aproximar-se. Era seu amigo, velho companheiro, um bom sujeito, dos melhores mesmo que já conhecera – acaso jamais chegara sequer a se lembrar de que se tratava de um preto? Agora, com o gringo ali ao seu lado, todo branco e sardento, é que percebia pela primeira vez: não podia ser mais preto. Sendo assim, tivesse paciência: mais tarde lhe explicava tudo, haveria de compreender. Passar fome era muito bonito nos romances de Knut Hamsun, lidos depois do jantar, e sem credores à porta. Não teve mais dúvidas: virou a cara quando o outro se aproximou e fingiu que não o via, que não era com ele.
E não era mesmo com ele.
Porque antes de cumprimentá-lo, talvez ainda sem tê-lo visto, o sambista abriu os braços para acolher o americano - também seu amigo.


SABINO, Fernando. A Mulher do vizinho. 7. ed. Rio de Janeiro, Record, 1962.p.163-4

Exercícios
01. No primeiro parágrafo do texto, o narrador relata uma mudança de estado na vida do personagem central da narrativa.
a) Identifique o estado anterior e o posterior.
b) Qual a atitude desse personagem diante do novo estado?

02. O segundo parágrafo relata ainda uma nova mudança de estado referente à personagem principal
a) Em que consiste essa mudança?
b) Que personagem, basicamente, desencadeou essa mudança?
03. Considerando-se que o emprego na agência era a sua salvação, que expediente adotou o novo empregado para garantir sua estabilidade?

04. Numa passagem posterior (3º parágrafo), já esquecido dos dias de desempregado, o protagonista sente-se ameaçado.
a) Em que consiste essa ameaça?
b) Explique por que ele se sente ameaçado.

05. Como o personagem central correspondeu ao cumprimento do sambista?

06. Quando pensou que o sambista vinha ao seu encontro para abraçá-lo:
a) Qual a atitude que tomou?
b) Transcreva, do texto, uma passagem em que o personagem procura justificar sua indiferença perante o negro.

07. O desfecho da narrativa é inesperado. Se soubesse desse desfecho, o personagem teria tomado a atitude que tomou?

08. Como se sabe, por trás de fatos narrados, existe sempre um posicionamento crítico do narrador, que se manifesta por meio da seleção dos episódios que relata. Com base no sentido global dessa narrativa, podemos concluir que:

(a) a insegurança e a condição de dependência podem levar o homem a agir contra seus princípios.
b) são próprias da natureza humana a ingratidão e a traição dos amigos.

(c) não corresponde à verdade dos fatos dizer que os americanos têm preconceito de cor.

(d) a diferença cultural entre os povos leva a desentendimentos desconcertantes.

(e) os brancos são mais traiçoeiros que os pretos.

  • Você acredita que exista preconceito racial no Brasil?Já vivenciou alguma situação parecida? 
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  •  http://gmmmz.blogspot.com.br/2011/02/preto-e-branco-de-fernando-sabino.html

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