Mais de quatro milhões de africanos foram obrigados a
cruzar o oceano, amontoados nos porões infectos e sufocantes dos navios negreiros, em direção a uma vida desumana de escravidão no
chamado 'novo mundo'. Este número estimado por pesquisadores equivale a cerca de 40% do contingente de negros que
desembarcaram nas Américas, entre o final do século XV e o século XIX.
Uma quantidade significativa de africanos que
aportaram no país vieram da Bacia do rio Congo, de Moçambique, do Golfo de
Guiné e de Angola e foram distribuídos por quase todo o território brasileiro,
para realizar o trabalho braçal nos
engenhos e nas usinas de cana, nas minas e nas plantações de café. Ainda hoje é
possível identificar a herança da diversidade cultural africana em estados como
Maranhão, por onde passaram centenas de negros do antigo Daomé, e Bahia, conhecida pela influência iorubá.
A distribuição aleatória dos grupos africanos pelo
país originou diferentes tradições religiosas, como o candomblé de nação ketu, oyó e ijexá nos terreiros baianos, o batuque gaúcho, o
xangô pernambucano e a mina maranhense. Muitas destas linhas mesclam elementos
iorubás, bantos e jêjes, assim como suas variadas línguas, culturas e crenças
religiosas num fenômeno que passou a ser conhecido como a diáspora africana.
"O conceito de diáspora tenta aproximar as experiências que os descendentes de
africanos desenvolveram a partir das inúmeras áreas onde eles foram alocados.
Existem várias semelhanças religiosas, culinárias, estéticas e até mesmo
corporais - na maneira de andar e de vestir, por exemplo - que foram
preservadas por esses povos espalhados pelo planeta. A idéia de diáspora é uma tentativa de entrelaçar todas essas diferenças,
mas preservando uma característica em comum, que é trazer para aquele lugar
onde esses africanos foram colocados o que de mais importante existia no seu
cotidiano na África: O mundo simbólico, o batuque, a dança e as celebrações
divinas. Tudo isso vai aparecer com características um pouco distintas, mas com
estruturas muito semelhantes, seja em Cuba, no Brasil, no sul dos Estados
Unidos ou no Caribe".( Júlio Tavares -
antropólogo)
"Os angolanos e os congueses chegaram primeiro aqui. A partir de 1580, já havia uma
grande quantidade de escravos na Bahia. Os negros de Angola foram escravizados
junto com os índios nas fazendas das jesuítas e de certos senhores de engenho.
Eles receberam dos indígenas o segredo das plantas da terra e criaram os
primeiros candomblés, chamados de "calunduns".
Houve uma primeira tradição na história do candomblé
brasileiro que foi criado pelos congos e pelos angolas, misturados com os
indígenas. A próxima leva de escravos africanos que vêm são os jêjes. Eles são
muito importantes, numericamente, no século XIX. Eles já encontram uma tradição
organizada, herdam vários elementos, mas trazem muitos recursos importantes da
própria tradição jêje e criam uma segunda tradição aqui.
Ainda há um terceiro momento, dos nagôs e iorubás, que
são os últimos a chegar, mas vêm com tradições poderosíssimas, que trazem
muitas novidades também, mas que absorvem essa terminologia, essa organização
espacial. Tanto é que dentro do candomblé de "ketu" existem vários
termos de Angola e do jêje, que foram absorvidos. Ou seja, o candomblé de
"ketu nagô"
trouxe tradições que influenciaram todos
os demais, mas, por sua vez, eles também absorveram tradições que já estavam
instaladas aqui".
Além de se misturarem entre si, as tradições africanas
também receberam influências das culturas indígena e portuguesa. Este
cruzamento é a base da criação de religiões como a umbanda, o catimbó e a
jurema nordestina.Para onde quer que olhemos, vamos encontrar uma sonoridade, uma palavra, um sabor, uma obra de
arte e também o resultado de anos de
trabalho dos negros africanos. A influência daquele povo está
para além do que enxergamos no mundo visível, neste nosso aiyê. Ela também
reorientou a nossa fé (Renato
Silveira - pesquisador)
"Foi através da religião que essa experiência se
unificou. Claro que eram muitas as formas de adorar o divino e essas formas
foram preservadas de maneira muito forte. Além disso, essa preservação trazia
aquilo que havia de mais importante para os africanos deserdados: a celebração
do território. A religiosidade traz, sobretudo, uma imagem do território
perdido, que é concretizado no terreiro.
O terreiro tem o papel importantíssimo de resgatar
aquele território nativo, mesmo que através de uma nostalgia, de um lamento. E
é esse território representado pelo círculo que vai reaparecer em várias atividades,
de cunho religioso e também no espaço lúdico. Essa mesma roda está presente na
capoeira, no jongo, no tambor de crioula, na gira da umbanda e no samba"
No fim do século XVIII. de cada dez habitantes da
cidade de Salvador, seis eram negros. E desses seis, a metade tinha vindo da atual
Nigéria. Eram os íorubás, aqui chamados de nagôs.
Apesar da religiosidade africana existir no nosso país
desde a chegada do primeiro escravo, somente no século XIX as religiões afro se
organizaram de forma sistemática. Um marco desse movimento foi a abertura de
terreiros, como a Casa Branca do Engenho Velho, o mais antigo do Brasil.(JúlioTavares-antropólogo)
"É um equívoco, quando se fala em Bahia, pensar
só em iorubá. Os iorubás chegaram depois, quando já havia negros na Bahia. O
recôncavo e a zona rural estão aí para comprovar. Você encontra tantos sinais
da presença banto, que talvez a gente nem identifique mais porque já é
brasileiríssimo, já está misturado. O povo banto chegou no início do tráfico de
africanos, quando os portugueses nos colonizaram. Eles formaram, com indígenas
e os próprios portugueses, a cultura do povo brasileiro"(Valdina Oliveira
Pinto - Pesquisadora baiana)
"Os escravos rurais, provenientes do território
banto da Africa, foram os que mais contato tiveram com os indígenas. Certamente
trocaram experiências no campo das plantas, da medicina dos vegetais e até no
campo religioso mesmo. Independente da importância dos outras matrizes, uma
coisa é certa: a matriz banto foi a mais influente na africanidade do
Brasil".( Nei Lopes - pesquisador
e compositor)
FÉ
Desde os primórdios, os humanos cultuam as divindades
a fim de assegurar o equilíbrio das forças vitais do universo. Junto com
poderes, os orixás receberam tarefas. Exu, Ogum e Oxóssi, por exemplo, atuam
como guardiões. Alguns reinam sobre as águas, como Iemanjá e Oxum. Iemanjá também
está vinculada à infância e à maternidade, assim como Ibeji. Ossaim e Oxumarê
são as entidades da natureza. O ambiente de Xangô é regido pelo fogo. Já Omolu
e Nanã atuam sobre a saúde da humanidade, o que implica, muitas vezes, na
doença e na morte.
Exu, o princípio dinâmico que rege a vida, e Ifá,
encarregado de transmitir os rropósitos dos orixás aos homens, são as duas
divindades que aparecem com destaque nos rituais afro-brasileiros. A casa de
Exu fica próxima à entrada dos terreiros com o objetivo de proteger o espaço
sagrado. Muitas vezes confundido com o conceito cristão de demônio, Exu é» na
verdade, uma força que possibilita a ligação entre este mundo físico, Aiyê, e
aquele habitado pelas divindades,
Orum.
"As divindades do panteão negro são princípios
cosmológicos, ou seja, a explicação de como e por que o homem foi instalado no
mundo. Isso ocorre com Xangô,Ogum e todos os orixás. Cada um é dotado de
preceitos explicativos acerca dos humanos. Exu é visto como perigoso porque
traz o que é instável. E ele quem
transporta a fala, o fundamento da comunicação, e também está relacionado à
sexualidade, que, em movimento, é considerada perigosa." Muniz Sodré - escritor
Quando os antropólogos anglicanos chegaram à África e
estudaram o sistema nagô, encontraram o Exu e toda a simbologia que há por trás desta divindade. Então, pensaram
"se é tão livre sexualmente, se não tem fixidez, é o diabo'. Foi assim que Exu passou a ser
representado para o ocidente como o demônio. Claro que os próprios cultos afro-brasileiros
assumiram esta definição e, por influência do catolicismo, apresentam o Exu com
aqueles chifres.
No culto negro não existe, sequer, diabo. E todo
princípio cosmológico em toda a divindade é ambivalente, com aspectos sexuais,
de perigo, de luta, de guerra e de ciúme porque tudo isso é constitutivo da
humanidade. Só que Exu é o motor do sistema, é ele quem transporta as
mensagens, é ele quem constitui a individualidade do sujeito".
"O culto a Ifá se originou no antigo Egito,
depois migrou para a África, onde se desenvolveu c, com o tráfico de escravos,
chegou ao Brasil e em Cuba. Hoje em dia, está no mundo inteiro. O oráculo de
adivinhação de Ifá, formado por 256 hinos, é muito certeiro e revela passado,
presente e futuro dos homens. Trata-se de uma cultura iorubá sobre as energias
do mar, da terra, dos ventos, dos rios e funciona como a base do que conhecemos
como Candomblé". Rafael Zamora, babalaô
O babalaô ocupa uma importante posição nos terreiros
de Candomblé. E aquele que se dedica ao culto do Ifá, também conhecido como Orunmilá, a divindade que tem livre acesso a todos os segredos.
O babalaô usa búzios e caroços de dendê para descobrir como foi o passado e
lançar previsões sobre o futuro, transmitindo a vontade de Olorum, o deus supremo. O babalaô está acima ao babalorixá.
"O babalorixá é o
sacerdote detentor dos conhecimentos a respeito do zelo e do culto aos orixás.
Ele passa por diversos estágios de formação. Ainda na fase de abiã, quando chega à casa de culto, recebe o fio-de-conta,
sua insígnia inicial. Em seguida, faz a primeira obrigação e vira um iaô,
quando desposar
o orixá. Depois, ele aprofunda seus
conhecimentos numa etapa que dura a vida inteira. E após sete anos de
obrigações gradativas, ele recebe um axé que lhe garante o posto de babalorixá ou ialorixá, no caso das mulheres. Ou seja, alguém
preparado para iniciar outras pessoas ao sacerdócio” Pai Bira de Xangô (Ilê Axé
Oba Ogodô)
Fonte: www.acordacultura.org.br
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