segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

ORIGEM E FÉ



Mais de quatro milhões de africanos foram obrigados a cruzar o oceano, amontoados nos porões infectos e sufocantes dos navios negreiros, em direção a uma vida desumana de escravidão no chamado 'novo mundo'. Este número estimado por pesquisadores equivale a cerca de 40% do contingente de negros que desembarcaram nas Américas, entre o final do século XV e o século XIX.
Uma quantidade significativa de africanos que aportaram no país vieram da Bacia do rio Congo, de Moçambique, do Golfo de Guiné e de Angola e foram distribuídos por quase todo o território brasileiro, para realizar o trabalho braçal nos engenhos e nas usinas de cana, nas minas e nas plantações de café. Ainda hoje é possível identificar a herança da diversidade cultural africana em estados como Maranhão, por onde passaram centenas de negros do antigo Daomé, e Bahia, conhecida pela influência iorubá.
A distribuição aleatória dos grupos africanos pelo país originou diferentes tradições religiosas, como o candomblé de nação ketu, oyó e ijexá nos terreiros baianos, o batuque gaúcho, o xangô pernambucano e a mina maranhense. Muitas destas linhas mesclam elementos iorubás, bantos e jêjes, assim como suas variadas línguas, culturas e crenças religiosas num fenômeno que passou a ser conhecido como a diáspora africana.
"O conceito de diáspora tenta aproximar as experiências que os descendentes de africanos desenvolveram a partir das inúmeras áreas onde eles foram alocados. Existem várias semelhanças religiosas, culinárias, estéticas e até mesmo corporais - na maneira de andar e de vestir, por exemplo - que foram preservadas por esses povos espalhados pelo planeta. A idéia de diáspora é uma tentativa de entrelaçar todas essas diferenças, mas preservando uma característica em comum, que é trazer para aquele lugar onde esses africanos foram colocados o que de mais importante existia no seu cotidiano na África: O mundo simbólico, o batuque, a dança e as celebrações divinas. Tudo isso vai aparecer com características um pouco distintas, mas com estruturas muito semelhantes, seja em Cuba, no Brasil, no sul dos Estados Unidos ou no Caribe".( Júlio Tavares - antropólogo)
"Os angolanos e os congueses chegaram primeiro aqui. A partir de 1580, já havia uma grande quantidade de escravos na Bahia. Os negros de Angola foram escravizados junto com os índios nas fazendas das jesuítas e de certos senhores de engenho. Eles receberam dos indígenas o segredo das plantas da terra e criaram os primeiros candomblés, chamados de "calunduns".
Houve uma primeira tradição na história do candomblé brasileiro que foi criado pelos congos e pelos angolas, misturados com os indígenas. A próxima leva de escravos africanos que vêm são os jêjes. Eles são muito importantes, numericamente, no século XIX. Eles já encontram uma tradição organizada, herdam vários elementos, mas trazem muitos recursos importantes da própria tradição jêje e criam uma segunda tradição aqui.
Ainda há um terceiro momento, dos nagôs e iorubás, que são os últimos a chegar, mas vêm com tradições poderosíssimas, que trazem muitas novidades também, mas que absorvem essa terminologia, essa organização espacial. Tanto é que dentro do candomblé de "ketu" existem vários termos de Angola e do jêje, que foram absorvidos. Ou seja, o candomblé de "ketu nagô" trouxe tradições que influenciaram todos os demais, mas, por sua vez, eles também absorveram tradições que já estavam instaladas aqui".
Além de se misturarem entre si, as tradições africanas também receberam influências das culturas indígena e portuguesa. Este cruzamento é a base da criação de religiões como a umbanda, o catimbó e a jurema nordestina.Para onde quer que olhemos, vamos encontrar uma sonoridade, uma palavra, um sabor, uma obra de arte e também o resultado de anos de trabalho dos negros africanos. A influência daquele povo está para além do que enxergamos no mundo visível, neste nosso aiyê. Ela também reorientou a nossa fé (Renato Silveira - pesquisador)
"Foi através da religião que essa experiência se unificou. Claro que eram muitas as formas de adorar o divino e essas formas foram preservadas de maneira muito forte. Além disso, essa preservação trazia aquilo que havia de mais importante para os africanos deserdados: a celebração do território. A religiosidade traz, sobretudo, uma imagem do território perdido, que é concretizado no terreiro.
O terreiro tem o papel importantíssimo de resgatar aquele território nativo, mesmo que através de uma nostalgia, de um lamento. E é esse território representado pelo círculo que vai reaparecer em várias atividades, de cunho religioso e também no espaço lúdico. Essa mesma roda está presente na capoeira, no jongo, no tambor de crioula, na gira da umbanda e no samba"
No fim do século XVIII. de cada dez habitantes da cidade de Salvador, seis eram negros. E desses seis, a metade tinha vindo da atual Nigéria. Eram os íorubás, aqui chamados de nagôs.
Apesar da religiosidade africana existir no nosso país desde a chegada do primeiro escravo, somente no século XIX as religiões afro se organizaram de forma sistemática. Um marco desse movimento foi a abertura de terreiros, como a Casa Branca do Engenho Velho, o mais antigo do Brasil.(JúlioTavares-antropólogo)
"É um equívoco, quando se fala em Bahia, pensar só em iorubá. Os iorubás chegaram depois, quando já havia negros na Bahia. O recôncavo e a zona rural estão aí para comprovar. Você encontra tantos sinais da presença banto, que talvez a gente nem identifique mais porque já é brasileiríssimo, já está misturado. O povo banto chegou no início do tráfico de africanos, quando os portugueses nos colonizaram. Eles formaram, com indígenas e os próprios portugueses, a cultura do povo brasileiro"(Valdina Oliveira Pinto - Pesquisadora baiana)
"Os escravos rurais, provenientes do território banto da Africa, foram os que mais contato tiveram com os indígenas. Certamente trocaram experiências no campo das plantas, da medicina dos vegetais e até no campo religioso mesmo. Independente da importância dos outras matrizes, uma coisa é certa: a matriz banto foi a mais influente na africanidade do Brasil".( Nei Lopes - pesquisador e compositor)
Desde os primórdios, os humanos cultuam as divindades a fim de assegurar o equilíbrio das forças vitais do universo. Junto com poderes, os orixás receberam tarefas. Exu, Ogum e Oxóssi, por exemplo, atuam como guardiões. Alguns reinam sobre as águas, como Iemanjá e Oxum. Iemanjá também está vinculada à infância e à maternidade, assim como Ibeji. Ossaim e Oxumarê são as entidades da natureza. O ambiente de Xangô é regido pelo fogo. Já Omolu e Nanã atuam sobre a saúde da humanidade, o que implica, muitas vezes, na doença e na morte.
Exu, o princípio dinâmico que rege a vida, e Ifá, encarregado de transmitir os rropósitos dos orixás aos homens, são as duas divindades que aparecem com destaque nos rituais afro-brasileiros. A casa de Exu fica próxima à entrada dos terreiros com o objetivo de proteger o espaço sagrado. Muitas vezes confundido com o conceito cristão de demônio, Exu é» na verdade, uma força que possibilita a ligação entre este mundo físico, Aiyê, e aquele habitado pelas divindades, Orum.
"As divindades do panteão negro são princípios cosmológicos, ou seja, a explicação de como e por que o homem foi instalado no mundo. Isso ocorre com Xangô,Ogum e todos os orixás. Cada um é dotado de preceitos explicativos acerca dos humanos. Exu é visto como perigoso porque traz o que é instável. E ele quem transporta a fala, o fundamento da comunicação, e também está relacionado à sexualidade, que, em movimento, é considerada perigosa." Muniz Sodré - escritor
Quando os antropólogos anglicanos chegaram à África e estudaram o sistema nagô, encontraram o Exu e toda a simbologia que há por trás desta divindade. Então, pensaram "se é tão livre sexualmente, se não tem fixidez, é o diabo'. Foi assim que Exu passou a ser representado para o ocidente como o demônio. Claro que os próprios cultos afro-brasileiros assumiram esta definição e, por influência do catolicismo, apresentam o Exu com aqueles chifres.
No culto negro não existe, sequer, diabo. E todo princípio cosmológico em toda a divindade é ambivalente, com aspectos sexuais, de perigo, de luta, de guerra e de ciúme porque tudo isso é constitutivo da humanidade. Só que Exu é o motor do sistema, é ele quem transporta as mensagens, é ele quem constitui a individualidade do sujeito".
"O culto a Ifá se originou no antigo Egito, depois migrou para a África, onde se desenvolveu c, com o tráfico de escravos, chegou ao Brasil e em Cuba. Hoje em dia, está no mundo inteiro. O oráculo de adivinhação de Ifá, formado por 256 hinos, é muito certeiro e revela passado, presente e futuro dos homens. Trata-se de uma cultura iorubá sobre as energias do mar, da terra, dos ventos, dos rios e funciona como a base do que conhecemos como Candomblé". Rafael Zamora, babalaô
O babalaô ocupa uma importante posição nos terreiros de Candomblé. E aquele que se dedica ao culto do Ifá, também conhecido como Orunmilá, a divindade que tem livre acesso a todos os segredos. O babalaô usa búzios e caroços de dendê para descobrir como foi o passado e lançar previsões sobre o futuro, transmitindo a vontade de Olorum, o deus supremo. O babalaô está acima ao babalorixá.
"O babalorixá é o sacerdote detentor dos conhecimentos a respeito do zelo e do culto aos orixás. Ele passa por diversos estágios de formação. Ainda na fase de abiã, quando chega à casa de culto, recebe o fio-de-conta, sua insígnia inicial. Em seguida, faz a primeira obrigação e vira um iaô, quando desposar o orixá. Depois, ele aprofunda seus conhecimentos numa etapa que dura a vida inteira. E após sete anos de obrigações gradativas, ele recebe um axé que lhe garante o posto de babalorixá ou ialorixá, no caso das mulheres. Ou seja, alguém preparado para iniciar outras pessoas ao sacerdócio” Pai Bira de Xangô (Ilê Axé Oba Ogodô)



Fonte: www.acordacultura.org.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário