Miriam Alves
Observava a aranha em suas peripécias acrobáticas. Pendia do teto num estranho equilibrismo. O fio que a
sustentava era tênue, invisível. Os olhos hipnotizados acompanhavam o sobe e
desce do inseto. As vezes, a pequena aranha, como a provocá-la, descia próximo
a sua cabeça e, com movimentos rápidos e graciosos, retornava, aproximando- se
do teto. Poderia ficar ali por horas, dias, meses a fio. Ela e a aranha tecendo
fios infinitos, brincando com a gravidade. Cecília tecendo fios invisíveis, a
aranha fabricando fios reais.
Olhos fechados, via a aranha movimentar-se em silêncio,
absorta. Manhã de um inverno tipicamente tropical. O sol envolto em nuvens, não
aquecia. O vento matinal cortava o espaço, batendo na janela como pancadas de
alguém que pede para entrar.
Entrar! Ali residia o mistério das coisas. Entrar, apenas
uma ação. Sair, outra ação. Ações desconhecidas para a aranha no seu sobe e
desce, não entrava nem saía... Tecia, em acrobacias. Acrobacias determinadas pela magia do fazer e não do viver. Ela e
Flora faziam acrobacias do viver, dependuradas no fio aparentemente tênue da vida. Fio invisível,
resistente, frágil.
Abriu os olhos, a aranha tecia. Um fio branco saído de
suas entranhas unia-se a outros fios. Cecília igualou-se àquela criatura. Um
estranho destino as unia naquele espaço. Pensou em Flora. Chamava-a assim por
nunca ter entendido o porquê do nome Floresta Brasileira que lhe deram.
Quando se apresentaram, guardou um sorriso de deboche e de curiosidade,
segurando a pergunta: por quê? Floresta a intrigava por causa da forma com que
via o mundo. Via? Floresta não via, era cega. Movimentava-se nos espaços como
se os soubesse por definição. Flora e Cecília, um dia o acaso as colocara
frente a frente.
Cecília olhava a aranha no teto, espantava o pensamento
difuso. Hoje cansará de acrobacias; recusava-se
a seguir o seu destino, tecer a própria teia. Encantava-se com o equilíbrio da
aranha. Equilíbrio que ela própria achava ter perdido. Fazia uma semana que não
via Flora. —- Conheceram-se num dia comum. Cecília corria atrasada para pagar
uma conta no banco. Previa que de novo aquela maldita porta giratória travaria
para ela. Pelo alto- falante ouviria a voz metálica do segurança dizer:
"Tem objetos metálicos? Celular? Chaves? Moedas?" Não, não possuía
nada disso. Porém, passaria pelo constrangimento de abrir a bolsa e procurar.
Ou melhor, fazer-se de quem procura o que não perdeu. Depois, olhando para o
segurança apreensivo, imporia no rosto um semblante que se traduziria em:
"Tô limpa!".
Não entendia por que as portas giratórias não giravam
na sua vez de adentrar aos recintos. Passou a não portar mais bolsa, somente o
necessário nos bolsos. Mesmo assim, lá vinha a voz do segurança: "Tem
chave? Guarda-chuva?Celular? Moedas? Objetos metálicos?".
Naquele dia rebelara-se, sem paciência para submetem-se
mais uma vez ao constrangimento de ser barrada. Fora barrada quase que a sua
vida toda. Naquele dia: "O escambal para tudo!!!",
pensou. Parada a porta do banco, respirou fundo, numa atitude de: "É
hoje!".
Entrou com tudo pela porta giratória. Uma força de
romper paredes, levar tudo no peito, na valentona, como dizia sua mãe. A porta
não travou, girou na violência. Ela foi lançada para dentro do recinto. O
corpo, acostumado ao cotidiano obstáculo, não o encontrando projetou-se no espaço.
Tropeçou na bengala de Flora, que saía dominando o ambiente, como se tivesse
olhos nos pés. Para não derrubá- la, instintivamente a abraçou. Gesto tido como
ameaçador
pelos seguranças, que a seguraram com truculência, prote-, gendo o patrimônio
bancário e a integridade de Flora.
Agora a aranha já tinha tecido geometricamente o centro de seu trabalho-natureza. Flora não poderia
ver a aranha tecer, pensou. Mas Flora sentia a vida tecendo destinos. Seu
destino. Aparentemente frágil qual fio o da teia, Flora defendeu Cecília contra
a incompreensão dos seguranças. Na confusão que se
armara, era a única que via com a nitidez dos sábios. Ordenou:
"Soltem-na!" "Mas, doutora...", tentou argumentar o chefe
dos seguranças.
Palavras ficaram no ar, inconclusas. j
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Cecília, refeita do susto, desculpou-se com Flora, com
a intenção de livrar-se o mais rápido possível da nova situação de
constrangimento. "Espere, eu te ajudo", disse Flora, dominadora. "Ajudar?" Cecília a olhou, um ser aparentando
fragilidade na sua escuridão. Ajudá-la como? Aspirou o ar, suspirando
resignada. Guiaram-na até um assento Acalmaram-se. Apesar de não demonstrar, o esbarrão abalara Flora de modo diferente do que fizera com Cecilia. O gerente mandou servir cafezinho para a doutora, sinônimo
de boa conta., e, sem outra alternativa, também para Cecília.
A aranha no seu crochê incessante ia e vinha tirando
de dentro das entranhas a linha para o artesanato ao qual fadava-se para
sempre. Cecília pensava em Flora e naquele dia em que os estigmas delas se
encontraram. Refletia: "Para que aquele encontro?". O que sabia é que
nunca lhe haviam servido cafezinho no banco. O que sempre a recepcionou foi a
voz metálica após a trava da porta giratória. O mundo girava para todos, para
ela travava.
A amizade crescera entre elas. Viajavam, passeavam,
parecia amizade antiga, prenhe de cumplicidade e camaradagem. Cecília
interpretava o mundo da visão para Flora. Fazia-a ver a beleza de um pôr-do-sol
derramando-se sobre o mar, com suas cores de mistérios. Interpretava a
escuridão da noite com estrelas verdadeiras e falsas — as luzes dos edifícios —
misturadas no céu. Às vezes, Flora guardava a bengala-guia e apoiava-se no
braço de Cecília e perambulavam pelas calçadas. Ela tinha a sensação de que enxergava
através dos olhos da amiga. A solidão da escuridão, naqueles momentos, transformava-se
só numa triste lembrança. Dependiam-se. Por sua vez, Cecília livrava-se das
travas das portas do mundo. Os porteiros e seguranças, com salamaleques, as
abriam envoltos em piedade e puxa- saquismo. Conversavam sobre isso, às vezes,
e riam, riam e riam.
Certa feita,
jantavam numa dessas cantinas estilo italiano que Flora apreciava tanto.
Conversavam sobre o sabor e o odor das iguarias. Cecília, embalada pelo torpor
do vinho, tagarelava à solta, descrevia as pessoas ao redor da mesa. Flora ria
como uma criança, redescobria o mundo. A um dado momento, pediu para a amiga
guiá-la até o banheiro. Cecília prontamente atendeu. Ao passarem por entre as
mesas um freguês do restaurante resolveu interpelar-lhes o caminho. Avançou
sobre Cecília como se ela fosse transparente. Já acostumada a isto,
preparou-se para sair da frente, dar- lhe passagem, ou seriam atropeladas pelo
homem, maior e mais forte que as duas. Colocou seu corpo protegendo o da amiga.
Com um discreto meneio de cabeça e comunicação sutil entre olhares, o garçom
avisou ao homem que ela guiava uma cega. Desobstruiu o caminho andando de
afasto e gesticulando as mãos como quem se desculpa.
A cena se dera
na sutileza dos olhares, Flora nada percebera. No entanto, notou que a amiga ao
retornar à mesa ficou muda. Aquela alegria de quem está à vontade desvaneceu.
Mais tarde no carro, que pertencia a Flora mas era dirigido por Cecília, esta
lhe contou o ocorrido. Não riu. Não achou engraçado. Por mais que Flora perguntasse
o motivo da tristeza, ela, muda, não revelava. Nem
ela mesma, naquele momento, saberia dizer o turbilhão passado por seus
pensamentos.
A aranha, terminando sua teia, parou. Cansada da
tarefa árdua a que estava predestinada desde sempre e para o sempre. Desta teia
dependia a sua vida, breve vida das aranhas, tecendo úteis frágeis belezas
simétricas, despercebidas na voragem do cotidiano.
Beleza. Era isso! Beleza! Cecília e Flora teceram sua
amizade nas teias do viver. Transformaram o destino árduo, os estigmas, como
insistia em afirmar Flora, no prazer de ver. Isto! Ver! A aranha supera-se a
cada teia, por mais que a simetria dos fios pareça sempre a mesma.
Cecília ligou para Flora: "Alô, descobri o
segredo da teia".
Flora respondeu: "Ainda bem, eu já sabia", e
emendou: "Almoçamos amanhã".
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