"Já nem sei a que
propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas
das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há
poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos
do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo.
Lembrei-me disso quando o Senhor Padre, depois
de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo para nada e que até os
pretos eram melhores do que nós, voltou a falar nisso de as mãos deles serem
mais claras, dizendo que isso era assim porque eles, às escondidas, andavam
sempre de mãos postas, a rezar
.Eu achei um piadão tal
a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agoraé ver-me a não
largar seja quem for enquanto não me disser porque é que eles têm as palmas das
mãos assim tão claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as
mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões
ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazer e que não deva ficar senão limpa.
O Senhor Antunes da
Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as coca-colas das
cantinas já tenham sido todas vendidas, disse-me que tudo o que me tinham
contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me
que era. Depois de eu lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o
que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:
“Antigamente, há muitos
anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria São Pedro, muitos outros
santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que
tinham morrido e ido para o céu, fizeram uma reunião e decidiram fazer pretos.
Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes usados e para cozer o barro
das criaturas levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não
houvesse lugar nenhum, ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo,
fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber porque
é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar
enquanto o barro deles cozia?!”
.Depois de contar isto o
Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir,
todos satisfeitos.
Nesse mesmo dia, o
Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e
disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma
grandessíssima pêta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era
o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho
num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos,
como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse muito fria,
só tinham molhado as palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem
e virem para o mundo.
Mas eu li num livro que
por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem
encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Vírginia e de mais não sei
aonde. Já se vê que a Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso.
Para ela é só por as mãos desbotarem à força de tão lavadas.
Bem, eu não sei o que vá
pensar disso tudo, mas a verdade é que ainda que calosas e gretadas, as mãos
dum preto são sempre mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!
A minha mãe é a única
que deve ter razão sobre essa questão de as mãos de um preto serem mais claras
do que o resto do corpo. No dia em que falámos disso, eu e ela, estava-lhe eu
ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de se rir. O
que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo,
quando eu quis saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu
não me cansava de insistir sobre a coisa, e mesmo assim a chorar, agarrada à
barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela me disse foi mais ou
menos isto:
“Deus fez os pretos
porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que
realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito porque os
outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a
servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os pudesse fazer ficar
todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam,
fez com que as palmas das mãos deles ficassem exatamente como as palmas das
mãos dos outros homens. E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não
admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que
os homens fazem, é apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem, é feito
por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem
qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com
que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus
por não serem pretos”.
Depois de dizer isso
tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
Quando fugi para o
quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar
tanto sem que ninguém lhe tivesse batido".
Luís Bernardo Honwana
(Conto do livro “Nós matamos o Cão Tinhoso”
Luís Bernardo Honwana
(Conto do livro “Nós matamos o Cão Tinhoso”
Ed. Ática, São Paulo, 1980)
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